Geleia ontem, geleia amanhã


Eu cresci ouvindo para não usar a minha roupa mais bonita, porque ela era roupa para os dias especiais. Cresci vendo louças e toalhas lindas que nunca usamos ao longo dos meus vinte anos, porque elas devem ser guardadas para "ocasiões" cujos termos não são muito bem definidos. E também para só ir comer aquele lanche mais gostoso quando existir algo a ser comemorado, hoje pode ser algo mais simples.

Hoje sempre pode ser um pouco menos. Melhor ainda se for o mais básico possível. O dia a dia merece as roupas mais beges, o prato com a borda lascada e a toalha de mesa manchada. Hoje eu não preciso desse doce de carrocinha, que custa tão pouco - mas não, não preciso, não estou merecendo. Afinal, que coisa espetacular eu fiz hoje para comprar um churros? Oh não, fica para outro dia. 

Hoje também olhei para meus vestidos favoritos. Há um ano ou mais não uso o que fica melhor no meu corpo, mas quando uso... Me sinto uma deusa. Não preciso me sentir uma deusa hoje, posso usar só jeans e camiseta. Não há nada de excepcional sobre hoje.

O problema é que eu comprei uma jaqueta prateada linda quando fiz 18 anos. De fato, um evento memorável em uma vida! Porém, quando quis usá-la pela segunda vez aos 19 - para um evento de gala, é evidente -, ela estava descascando, ressecada pela falta de uso. Ah, e de tanto que eu esperei por um dia mais incrível para ir comer aquele hambúrguer vegetariano, a loja que tinha perto de casa fechou. No dia que eu quis me recompensar por qualquer feito nobre o suficiente indo até lá, vi apenas uma porta fechada.

E os adesivos mais bonitos do caderno da escola? Perderam a cola porque eu nunca usei. Fiquei com pena de usar em qualquer lugar sem importância, decorar um papel qualquer que pudesse se perder. Fiquei com pena de gastar as canetinhas brilhosas no dia-a-dia até que elas secaram ainda pela metade. 

Eu cresci acreditando que eu precisava só do mínimo de água, que só merecemos aquilo que nos é essencial e que só é especial aquilo cuja razão de ser é deslumbrante. Deixei secarem as canetinhas e os adesivos e a jaqueta, me conformei com a secura. Esperei, esperei e sempre esperei pelos dias maiores, melhores, mais reluzentes. 

Minha vida sempre vai começar amanhã e eu só consigo viver no hoje. "Geleia ontem e geleia amanhã, nunca geleia hoje". Aprendi cedo a lição da Rainha Branca de Carroll. Mas e agora, quando o hoje se estende ao infinito? E agora, que o ontem parece cada vez mais distante e o amanhã não possui previsão de chegada? Dentro de casa, sem poder mesmo ir para o tal do restaurante que estou há três anos querendo conhecer. Mesmo que eu vista meu vestido mais bonito, só eu vou ver. Já não tenho minhas canetinhas para colorir meus dias. Eu espero, espero, espero.

Junho de 2020

Gabi Neves | @gabinevesrs 
Psicologia - UFRJ


Sobre autor (a/e):: Escrevo desde que me entendo por gente, se escrever nem gente eu sou. Ou, menos dramaticamente, eu elaboro esse mundo bagunçado quando posso ler, escrever, cantar ou atuar sobre ele. Esse texto é uma alternância entre momentos de nostalgia e outros de "esse negócio de autoconhecimento dá trabalho".

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