Seu Gari,
Passei o primeiro ano de faculdade imersa na euforia da novidade, da rotina universitária cheia de contrastes com minha antiga vida escolar. Eu saltava do meu ônibus voraz por entrar no campus, ainda testando se valia mais a pena este ou aquele trajeto, entrar pelo portão principal, ou por aquele perto do shopping, ou aquele que eu passei meses sem nem saber que dava dentro da minha faculdade.
Por volta de setembro, tudo ficou um pouco mais sereno. Não era mais meu primeiro período, a emoção de caloura deu lugar a uma rotina diária. E eu passei a reparar mais no caminho. Na passagem subterrânea que pede que as bicicletas sejam empurradas ao invés de pilotadas nos corredores cheios de eco abaixo da avenida expressa. Na barraquinha de vende xuxinhas e presilhas de cabelo logo na rampa saindo da passagem. Nos grafites, coloridos ou não, na parede da editora da universidade. No muro cinza preenchido de plantas que o tornam verde.
E assim, na rua do muro, um dia eu prestei atenção no gari. Um senhor, imagino que com seus 60 a 65 anos, de pele escura e bigode bem clarinho. Ele deve ter no máximo cinco centímetros a mais que eu, levemente encurvado. Não sei se é careca, nunca o vi sem o boné laranja da prefeitura.
A calçada é estreita e a rua é longa. Às sete e meia da manhã, por vezes ele era a única pessoa à minha frente, ele e a caçamba laranja estreitando ainda mais a via. Depois que eu reparei nele, se tornou constrangedor simplesmente passar ao seu lado em silêncio, olhando para frente ou o nada. Até o dia que eu disse bom dia. Às vezes os seguranças da passagem subterrânea ignoram quando eu falo, outras vezes eles respondem com um aceno de cabeça. O gari era tão senhor e eu falei tão timidamente que nem sabia se teria resposta. Então, veio o seguinte:"Bom dia princesa, uma boa aula!"
Eu sorri de volta (não sei se de volta, na verdade não sei se ele sorriu por baixo do bigode espesso). No dia seguinte, dei bom dia outra vez, e novamente recebi a bendição do seu gari, sempre desejando bom dia e boa aula. O primeiro bom dia foi em outubro, e quase todos os dias eu cumprimentava meu novo amigo de rua. Geralmente eu o encontrava exatamente no mesmo ponto da calçada, às vezes ele estava varrendo as folhas do outro lado da rua e eu precisava projetar mais o bom dia para alcançá-lo. Em retorno, ele me desejava bom dia e boa aula.
O fim de semestre começou a apertar, e eu andava com pressa para chegar, fazendo uma pausa mais curta para a cortesia diária. Apesar disso, eu sempre acabava percorrendo o fim da calçada mais feliz depois da benção à aula do dia. Eu até brincava com ele no dia das aulas chatas, naquela manhã seria difícil a boa aula.
Em dezembro, eu estava com um pé nas férias e outro nas provas. Passei a ir duas a três vezes por semana pro campus, indo fazer prova e voltar. Seu Gari mudou o bordão para "Bom dia princesa, um bom dia e uma boa prova!". Eu agradecia, às vezes dizendo que ia precisar mesmo. Num dia seguinte, ele perguntou se eu fui bem. "Fui sim! Bom dia e bom trabalho pra você".
Não percebi que era meu último dia antes das férias e esqueci de dar feliz Natal. Em março, no retorno, fiz questão de entrar pelo portão do muro no primeiro dia para dar bom dia ao meu colega, e lá o encontrei novamente, com o bigode ainda mais grosso. Nem sempre essa é a melhor entrada, em alguns dias tenho aula em um prédio que é mais perto da entrada da editora. Não no segundo semestre, que eu ia todo dia pro meu instituto. Já no terceiro eu tinha uns dois dias nesse outro prédio, então ficava sem o bom dia por estar sempre em cima da hora.
Teve uma semana em que eu faltei nos dias que eu passaria pelo muro verde. Depois de uma semana sem o desejo de boa aula, passei sonolenta pela calçada estreita e procurei pelo Seu Gari. Não achei. Tinha uma mulher com o uniforme da prefeitura varrendo do outro lado da rua, e nada do senhorzinho que me fazia companhia no sol fraco da manhã.
Eventualmente ele reapareceu, e voltei a sorrir para ele apesar do sono de uma estudante que perdeu o gás inicial da graduação. Perguntei se ele tinha ido bem de férias, acho que ele sorriu um pouco, pelo menos com os olhos. Eu dava bom dia, ele me dizia "boa aula!". Nossa rotina ficou assim por um tempo, sempre a mesma vassoura, a mesma caçamba, o mesmo boné, no máximo uma variação entre mangas laranjas longas ou curtas. E eu com minha mochila nas costas e uma roupa que, por vezes, beirava a estética do pijama.
Aconteceu de novo, eu cheguei na rua da nossa saudação habitual e ele não estava. Olhei para o outro lado da rua, nada. Mas também, não tinha ninguém. No dia seguinte a primeira aula era no prédio perto da editora. No outro, eu vi um sujeito diferente uniformizado em frente à caçamba, fazendo dupla com o moço do caminhão de lixo. E em todos os outros desde então, aquela mulher que apareceu nas férias parece ter ocupado o lugar dele.
Seu Gari, espero que você tenha aposentado. Você é um senhor, não cabe mais ficar o dia inteiro em pé. Sabe lá que horas você saía de casa pra chegar lá tão cedo. Sete e meia da manhã eu chegava na faculdade e você já estava lá, até nos dias que eu chegava onze da manhã lá estava você em pé, nunca te vi sentado para descansar. Agora, estou no período de avaliações e não tenho ninguém para me desejar boa prova. Eu voltei a andar silenciosamente pela rua do muro verde. Tentei estabelecer contato visual com a mulher nova, mas não deu muito certo. Logo agora você parou de trabalhar ali na rua, Seu Gari. Eu estava querendo perguntar seu nome.
2019, revisitado em 2021
Gabi Neves | @gabinevesrs
Psicologia - UFRJ
Sobre autor (a/e): Sou a Gabi Neves, faço parte da Fragmentos desde o início :) Escrever sempre foi o meu refúgio e, agora, reler o que eu escrevia sobre a vida de antes, "o antigo normal", me deixa viajar no tempo com gratidão pelo que vivi quando achava que sabia o que esperar da vida. Continuo escrevendo e reescrevendo, criando sentidos para mim em meio ao caos.
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