Estar nos campos reais traz vida


Estar nos campos reais traz vida (junção de dois textos escritos em 2020)

De repente é como se eu quase sentisse o mar me tocando, querendo me resgatar para os seus braços. De repente é como se as esquinas falassem, gritassem o meu nome e me implorassem pela minha volta, sem entender essa ausência. Eu juro, chego a quase ouvir o ônibus que eu sempre pegava, religiosamente todas as manhãs, me chamando, me pedindo pra adentrá-lo e ali me sentar. Eu chego a quase sentir o barulho da correria, aquele som de fundo que me acompanhava em todo e qualquer caminhar. A grama do campinho batendo no meu joelho, o chão feito de pedra da faculdade me fazendo tropeçar. É como se eu pudesse escutar os lugares, é como se eu pudesse sentir os cheiros misturados que ficam no ar, que ficam pairando o céu numa avenida congestionada de gente. Esse cheiro de gente. Esse abraço que abraça sem necessariamente ter alguém me abraçando. Esse sentimento de pertencimento através do compartilhar. Compartilhar as ruas, as salas, os restaurantes, os bares, os banquinhos espalhados nas praças, nos espaços feitos para convivência. Cada um numa interação específica, com uma, duas ou várias pessoas numa mesma conversa ou até mesmo sozinho; mas estar em conjunto nos faz sentir o pertencimento. 

 

A troca sustenta as nossas vidas enquanto humanos; é ela que dia após dia reacende sorrisos, lágrimas, euforias, descontentamentos, surpresas... É a nossa junção, é a nossa comunicação, é a nossa marca escutada, vista, sentida e acolhida por alguém que nos faz ser quem somos. Ser humano é ser a simbiose mais perfeita com o mundo, com as coisas que nele habitam e, principalmente, com as pessoas; com um de nós, com vários de nós, com cada um de nós. Perfeita não no sentido positivo, mas no sentido de que sem essa constituição mútua, não há vida. Afetar e ser afetado num fluxo sem fim. 

Agora, o fluxo foi alterado, dificultado, limitado; e o que vem me atravessando é a estranheza, a falta de reconhecimento dos corpos enquanto corpos que não podem mais se entrelaçar. O quanto é difícil sair "somente para o necessário", o quanto é cruel com a nossa humanidade – que é humanizada no social – olhar de longe, falar de longe, escutar de longe. Uma reflexão que vem me martelando é sobre a mudança dos nossos espaços que ocorreram com a pandemia. Tudo passou a ser realizado "de forma remota". As aulas são nesse caráter remoto, que significa a sua transmissão em tempo real nas telas. Isso tem me gerado uma confusão no mundo tão gigantesca. Eu fico o dia todo em casa, no computador e, no final do dia, eu não sai do mesmo lugar. Apertar no botãozinho do microfone quando quiser falar e, depois, desligar para não fazer barulho. Colocar a câmera só se tiver a fim ou se a internet permitir, não é mais intrínseco ao evento nos olharmos; e, mesmo quando ligamos a câmera e nos olhamos, não é como se fosse presencialmente, somos mediados por telas. O que fazemos se o ambiente compartilhado é uma tela, uma ferramenta, um aparelho tecnológico que pode quebrar a qualquer momento, que pode desligar, que pode ficar fora do ar, que pode queimar e, assim, desconectar as nossas ligações?

Eu sinto tanta saudade dos afetos diários, das maiores besteiras e dos risos partilhados. Eu sinto tanta saudade de estar presente no espaço que eu vou realizar minhas atividades. Estar presente em um espaço real, com o corpo vivo, tocando, ouvindo, existindo em um plano real... Reconheço que essa modalidade remota foi nossa alternativa perante o cenário pandêmico e que os casos seguem aumentando novamente, fazendo com que tenhamos que nos fechar mais e mais. A vida lá fora se tornou um perigo. Compartilhar espaços se tornou perigo. 

Quando penso em compartilhar espaços, logo me lembro da Universidade. Outro dia, tive que ir ao Rio Sul resolver umas coisas por lá e resolvi passar na UFRJ, já que é do lado. Não entrava lá desde março. O campus meio abandonado, a grama crescendo, tudo vazio fora algumas pessoas que frequentam o CAPS Franco Basaglia e os seguranças rondando. Tudo calmo, meio sem cor, meio sem vida. Por mais que eu tenha sentido o coração reconfortado ao me sentar no banco do IP e sentir que aquele lugar ainda existe, ainda está ali, eu senti também o quanto um ambiente se transforma sem a presença das pessoas que o frequentam; assim como nós, estudantes ou trabalhadores da PV, mudamos esse ano por não termos frequentado o nosso campus. Os afetos não estão conectados só às pessoas do lugar ou só ao lugar, mas sim às pessoas naquele lugar. Exatamente nesse formato, nessa relação. 

não sei como será 2021,
não sei o que esse vírus e esse governo da morte nos reserva,
mas eu vou seguir aqui, desejando todos os dias
que essa tempestade passe logo, logo
e que possamos viver o nosso campo real,
com as nossas interações reais
sem mediação de telas ou máscaras
cara a cara, sem medo


Isabela Pessoa @isabpessoa
Psicologia - UFRJ


Sobre autor (a/e): Me chamo Isabela, tenho 22 anos e sou estudante de psicologia, 8º período, na UFRJ.

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