A Bala no Peito

1ª ENCONTRO 

C: Mestre, vim aqui pedir ajuda ao senhor.

F: Do que você precisa?

C: Eu tenho uma bala dentro de mim.

F: Uma bala?

C: Era tanto tiro que mal se podia ouvir os gritos dos meus vizinhos. O da Maria, minha vizinha de porta, eu ouvia. Sabia que era dela. Ela gritava mais alto que todo mundo. Porque mora bem perto de mim, mas também porque o filho dela estava no meio do tiroteio.

 

Aí o grito dela ficou bem alto mesmo. Os outros eu não sei de quem eram. Eram de muitos. Gritavam línguas que nasceram de genocídios, mas que, ao mesmo tempo, era tudo o que tinham  para nos fazer ouvir, para gritar até que se estourassem os tímpanos daqueles que os silenciaram. 

 

No fim, mataram 29 moleques. 29. 


F: E a bala? 

C: Eu acho que foi nessa hora que a bala ficou aqui entalada. Não lembro se eu estava comendo alguma coisa, mas quando tudo acabou, eu só sentia esse negócio entalado bem aqui. Eu acho que é uma bala ou coisa parecida. Lembro de quando era pequena e minha mãe dizia que isso ia acontecer se eu engolisse a bala antes de desmanchar. 

F: É preciso subverter, virar o cano da língua como arma que nos apontam. É a partir dessa língua capaz de expropriar diferentes manifestações de vida, que devemos nos apropriar de nossas narrativas. Fazer isso é lutar e lutar dói. Dói porque ir à luta não significa destruir a estrutura que nos oprime e domina, mas, às vezes, morrer tentando arranhá-la. Por isso, peço para que continue falando. 

C: Um dos meninos tinha entrado há pouco tempo nesse negócio. Foi convidado. Como iria dizer não? Acabou no meio daquela confusão. Esse menino eu vi crescer. Era muito bonzinho. Me chamava de tia, numa fala mansa. Bem quietinho, começou a ajudar os chefes lá. Ele pensava em sair daqui. Mas como conseguir dinheiro pra sair daqui?

 

Quando começou aquela confusão, me bateu um desespero, sabe? Eu sabia que esse menino estava lá. Queria tirar ele de lá, mas como? Fiquei trancada dentro de casa, atrás do sofá, pro caso de algum tiro entrar na minha casa. Assim, o tiro encontraria ao menos mais um obstáculo pela frente, antes de mim.

 

Mas o menino estava lá. Só tinha ele e os meninos à frente dos tiros. Para eles, não tinha sofá, não tinha mais nada. Eu senti que ele ia morrer. E morreu. E agora? 

F: Não é sobre se render, mas sobre cair, um processo necessário para reavaliar aquilo que está ao nosso redor, perceber a rachadura diante de nós e não se deitar sobre ela, mas se reerguer, sabendo que o seu arranhão faz parte disso. 

C: Pois é... Tô com essa bala arranhando dentro de mim. É como um casulo paralisado. Ela está aqui no meio do meu peito. Não desce, não sobe. Não some. É difícil de engolir.

2° ENCONTRO

F: Oi. Não soube o que te dizer na noite passada, mas peço que continue falando, pra ver se essa bala sai.

C: Falar mais o que? Que ele morreu? Que 29 morreram? Todo mundo já sabe disso. Mas esse aperto aqui no meu peito não sai. Eu tenho que trabalhar com esse negócio me incomodando dia e noite. Não consigo atestado pra isso, porque quem é que vai me dar atestado pra bala no peito?

F: Fale mais sobre o menino.

C: Ah, ele era bonito.. Inteligente. Ele fez as contas, né? Porque era inteligente. Ele ganharia muito mais nesse negócio do que em qualquer outro trabalho. Mas não era só isso. Ele não queria ficar mal com os caras.  Viu como ele era inteligente? 

F: Como ele morreu? 

C: Ele levou vários tiros. Mas o que matou foi um bem no meio do peito. Aí não tinha jeito. Mas até foi bom, porque ninguém ia levar ele pro hospital mesmo. Assim foi mais rápido. Mesmo assim, eu não me conformo. Era muito novo. E eu gostava dele. Muito. 

F: E a bala? 

C: Tem que sair, mestre.

F: O que você tem feito para tentar colocá-la para fora? 

C: Nada, porque não tem jeito. Nada disso tem jeito. 

F: Bom, você me diz que não dá para engolir e acho que você tem toda razão. Também me diz que não tem jeito de colocar para fora. 

C: Ah, engolir, não dá mesmo. Nem quero! E pôr para fora eu não consigo. 

F: Quem sabe encontramos algo novo a se fazer com isso que não dá para engolir e nem para extirpar. 

C: O que é esse algo novo? 

F: Vamos ver juntos. Talvez, nos apropriar da própria história seja menos sobre vangloriar nossa coragem em retirar uma bala de dentro das próprias vísceras, mas sim sobre a dor ao fechar sozinho aquele buraco, ou  sobre aqueles que sem remorso atiraram, sobre os irmãos com uma bala no peito que não puderam contar suas histórias. Sobre qualquer coisa, menos sobre vencer algo que na realidade não se vence. Ou se rende, ou luta. Vamos?

C: Tá, mestre. Vou dar essa chance.  Retomarei minha voz, minhas narrativas, minha própria vida, sabendo que ao fazer isso, serei imorrível. 

F: Obrigado por aceitar esse convite. Para vencermos a tentação do espelho d'água, precisamos saudar quem as águas rege. E aqui, saúdo você. Revisitemos a sua história e sua ancestralidade para dar a ela um lugar de valor.

 

Enquanto não nos encontramos novamente, peço que escreva sobre as coisas que vem à sua cabeça, principalmente quando a bala aperta no peito.

 

3ª ENCONTRO

C: Andei escrevendo.

F: Diz certa autora, chamada Gloria Anzaldúa, que “escrever é confrontar nossos próprios demônios, olhá-los de frente e viver para falar deles. Poderia me mostrar o que você escreveu? 

C: Claro. Mas antes quero dizer que me sinto melhor. Vir aqui é um respiro na semana. Não um respiro, um suspiro. Um suspiro doce e com aspecto de neve. Daqueles que vem dentro do saquinho de Cosme e Damião, que eu buscava na rua sem entender que dia era aquele em que pessoas adultas simplesmente distribuíam doces para as crianças na praça, na rua e nas esquinas. Eu já estava tão acostumada com a chatice do mundo dos crescidos! O restante de setembro era bom, mas seguia como o previsto. Escola, brincadeira com horário para acabar. Mas durante um dia suspenso do mês, suspiro. Alegria de correr pela rua com almas espalhafatosas como a minha em busca da doçura terna e pura, do suspiro contente que passava pelo corpo. Embora soubesse que aquela euforia era breve, o corpo sabia que os doces coletados preencheriam a alma suspirante quando a semana previsível seguisse seu rumo. 

F: Tão diferente parece esse suspiro daquela bala que você descrevia. 

C: Sim, acho que a bala está desmanchando. Mas não sumindo, sabe? Ela está se desmanchando em um suspiro dentro de mim. Está se espalhando e, assim, não fica tão apertada. 

F: Onde essa bala estava apertada antes? 

F: Deve ser no coração. Até porque, se meu coração pudesse falar, acho que ele diria “cansei de ficar espremido aqui dentro!

      AI, que aperto é esse ?

 

porque o espaço em volta me comprime ??

 

ei, costela, chega pra láaa

 

muito peito aqui em cima, será”?  

F: Você fala de menos aperto e de não mais se espremer. 

C: Sim, quero liberdade. 


Ainda não sei como,

mas acho que sei onde:

do lado de dentro.

 

Se a liberdade é sentir

e se sentir é poesia,

agora eu sei

 

que

a

liberdade

 

existe

 

sempre

existiu

 

e continua

existindo

 

dentro de mim.


Reticências, no lugar do fim.



A peça “A BALA NO PEITO” foi criada coletivamente por Fernanda, Felippe, Flora, Gabi, Helena e Mônica. Performada ao vivo no dia 11/05/2021, fez parte da avaliação da disciplina "Poéticas políticas das emergências: escrever, clinicar, existir" (IPS040 – 2020.2), coordenada pelo Prof. João Ferreira.

Ilustrações de Flora Dias. Edição de Felippe Del Bosco.

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