Vou lhes contar! da vez em que os músicos salvaram o dia.
Era um dia atípico. Não por nenhum motivo metafórico, mas por um motivo simples: a terra se movia. A terra dançava, pulava, chacoalhava, gritava. Provavelmente queria dizer alguma coisa, mas ninguém se atentou a isso naquele momento. Afinal, quando a terra grita, as estruturas ruem.
Fato é, que era um dia atípico. O dia dos encontros. Diversos congressos de diversas áreas ocorriam simultaneamente naquele dia. Na quadra dos encontros, os congressos se dividiam entre as áreas de atuação. Havia congresso de advogados, de médicos, de engenheiros, de historiadores, de músicos – até de jogadores de futebol havia congresso! Dia estranho, esse. Por que os congressos de tantas áreas aconteciam ao mesmo tempo? Enfim. Havia outros, mas não vem ao caso porque não sobreviveram. Só os que estavam perto dos músicos sobreviveram.
Tudo estava calmo e todos faziam aquilo que sabem fazer. Advogados advogavam, médicos medicavam, engenheiros engenhavam, historiadores historiavam, músicos musicavam e os jogadores… bem, falavam sobre futebol e outros assuntos. Dividiam o espaço, mas não igualmente, é claro. Enfim, tudo fluía conforme o usual, inclusive o desprezo entre todos, claro. Todos desdenham as funções de todos. Mas ninguém é mais desdenhado que o músico – até necessitar de uma canção para salvar sua vida, sem dúvida.
Quando a terra começou a dançar, após o seu grandiloquente grito, muitos poderiam pensar que ela dançava ao convite dos músicos. "De raiva, os músicos chamaram a terra para dançar". Mas não, ninguém pensou nisso além de mim, pois, como já disse, as coisas começaram a ruir. Figurativamente, talvez, mas certamente ruiu literalmente. A grande coincidência de estarem todos no mesmo lugar, tendo que dividir o mesmo espaço, mesmo que não igualmente dividido, se mostrou no momento em que as estruturas ruíram, e os grupos se viram soterrados no mesmo vão. A estrutura deixou uma segunda chance em forma de vão. "Se virem nesse vão", disse a terra em forma de grito grandiloquente.
No vão, no bolsão de ar, na caverna formada pelos destroços das estruturas, nem houve tempo para lamentar os que não sobreviveram, todos começaram a fazer o que sabiam de melhor para tentar sair de lá: brigaram, reclamando uns dos outros. Após extravasarem seus ódios, partiram para a segunda coisa que melhor sabiam fazer: os advogados advogaram, os médicos medicaram, engenheiros engenharam, os historiadores historiaram, os jogadores… bem, falaram sobre futebol e outros assuntos. E os músicos? Bem, foram colocados de lado, já que seus instrumentos foram destruídos no grande desmoronamento. "Músicos sem instrumentos? arrumem o que fazer!", advogou um advogado.
Após algumas horas, nenhuma ajuda apareceu. Os grupos cansaram e caíram sentados de desgosto. Nem mesmo os engenheiros, grande esperança nas mentes dos grupos (por mais que alguns não admitissem), arranjaram solução possível. Como um engenheiro vai engenheirar sem os seus equipamentos? Mesmo que soubessem exatamente o que fazer para levantar os escombros necessários para se salvarem, não havia como ser feito. Alguns bradavam que sabiam o que fazer – o que era devidamente historicizado pelos historiadores –, mas os advogados advogavam que de nada serviria.
Com o tempo ocioso, pelo menos, os historiadores lembraram dos que não sobreviveram e os médicos medicaram aqueles que com o cansaço demonstraram que precisavam. Já os advogados continuaram a advogar. Enquanto os jogadores de futebol… jogavam uma pelada com as pedras – eram sem dúvida os mais tranquilos e alegres naquela situação.
E os músicos? Assistiam tudo aquilo enquanto musicavam em suas imaginações. Eram como uma orquestra sem instrumentos… à exceção de uma pessoa. Uma jovem cantora. Esta não tivera seu instrumento quebrado, por mais que tenha ficado levemente rouca. Aliás, não era qualquer cantora – cantava em um coral, e havia sido convidada para o congresso de músicos para uma solenidade.
Esta jovem, em seu tempo ocioso, começou a cantar. E sua voz era… um deleite de pura ressonância. Tocava nos corações daqueles a sua volta. Os músicos, então, perceberam que não necessitavam de seus instrumentos para fazer música. A música estava ali com eles o tempo todo.
Foi então que os que eram de batuque batucaram, os que eram de sopro sopraram, e por aí vai, todos cantando, tocados pela voz da jovem. Foi quando os historiadores, que se aproximavam para historiar, sentiram o mesmo toque e também foram convocados. Largaram o que faziam no momento e começaram a cantar. Cada um no seu jeito, sem preocupação de afinação, pois a ressonância já estava ali presente. Depois disso, os médicos vieram conferir se estavam necessitando de medicação. Quando foram ao encontro das vozes, perceberam que eram eles que precisavam de saúde. Outro tipo de saúde.
Depois vieram os jogadores de futebol na suspeita que uma festa estava rolando, depois os advogados ao ouvirem aquele barulho que não entenderam e, por fim, os engenheiros cabisbaixos foram tocados. Todos foram convocados. As vozes em uníssono de ressonância ecoavam pelo vão. Aquele bolsão de ar vibrava e vibrava. Ao ponto do som fazer superar barreiras, figurativas e também literais.
No que mudamos a perspectiva e vemos a ajuda. A ajuda está sempre por aí. No caso dessa história, estavam do lado de fora, sem saber que aqueles grupos estavam soterrados. Quando o som superou as barreiras, a ajuda por sorte passava ali perto. Ela ouviu! e foi ao encontro do som. A ajuda se dispôs a ajudar.
Foi nesse momento que os advogados intermediaram o encontro com a ajuda. O plano dos engenheiros foi, então, seguido. Os jogadores de futebol carregaram os feridos no momento em que precisaram. Ao sair do vão, os médicos cuidaram desses feridos. E, felizmente, essa história é possível de ser contada pelo registro dos historiadores.
E os músicos? Bem, foram os que puxaram as comemorações! Afinal, não há festa sem música.
28 de outubro de 2021
Rafael Vasconcellos
Rafael é carioca, clínico em eterna formação, ex-tenor no “SVAC” e mestrando em psicologia pela UFRJ. Filósofo de botequim e sofredor pelo Botafogo, escreve como hobby para ajudar a respirar. Acredita que na escrita de ficção como uma arma poderosíssima de comunicação que deveria ter mais espaço nos ambientes acadêmicos.
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