Por que me dói tanto a amplitude branca do papel? Por que apenas no espaço seguro do bloco de
notas do telefone, em um ônibus em movimento - entre cenários, hálitos e empurrões era mais fácil
soltar os dedos em uma linha de pensamento e terminar com a sensação de trabalho feito? Por que
escrever se tornou tão doloroso, sempre que fora de uma grade de demandas acadêmicas? Por que
tudo que se escreve tem de ser minimamente bom? Ou muito bom? Visceral, tocante, inesquecível.
Aonde fora aquela que também acolhia os textos de lata de lixo?¹
A vida inteira se despedaça em excessos, tudo que passe de 140 caracteres é um trabalho e não um
olhar. Estendemos para 280, ou 2.200, pois com um fôlego tão pouco não houvesse quem
conseguisse entender o que ouvia. Havia mais a se dizer. Como quem coloca moedas no orelhão
adicionou-se o recurso de colar um pedaço de fala no outro. Um fragmento de escrita no outro? De
fragmento em fragmento quem escreve compra mais alguns segundos de leitura. O fio segue, dando
apenas alguns detalhes e desenrolares da história, o leitor segue o novelo, lê mais um e outro pedaço
de fio enquanto a história, engraçada, cotidiana, triste, informativa ou de lata de lixo, toma seu
lugar, encaixa suas peças. Uma história que poderia ser lida como essa ou aquela outra, presente
nessa amplitude assustadora e desértica do papel branco no qual escrevo. Uma história que se afina,
para ser vista em colunas longas e seguintes. Uma história que não assusta pelo número de páginas,
mas também não tem o cheiro do papel. Por que me dói tanto voltar a escrever histórias? Essas que
escorriam de mim, escondidas no piscar dos olhos ou no breu dos sonhos para serem lembradas
como moscas no decorrer de um dia ordinário. Fingir que não as escuto é demasiadamente doloroso
e, ainda assim, as tenho silenciado com a facilidade de quem se acostuma. E não deveria.
“Agora, mais do que nunca, precisamos de arte” eu ouvi em 2018, com a leve sensação de que
havia ouvido também em 2016, ou fora em 2017? O tempo veio passando e todo ano parece que
agora é o momento em que, mais do que nunca, nunca anteriormente, precisamos de arte. Nos
desvelamos artistas da fome² que mesmo quando acaba seu período de jejum, sai de sua jaula, olha
para a comida e quase que se recusa a comê-la.
Precisamos de arte agora, mais do que nunca. Olho para as histórias dentro de mim e volto a
escrever o trabalho acadêmico daquela disciplina. Precisamos de arte agora. Ponto de pauta: 1)
resolver a coisa número um 2) depois a número dois 3) falar com aquele departamento 4) debater a
coisa número 4. Precisamos de arte agora. Um livro aguarda pacientemente com o marca-página
no primeiro terço. Precisamos de arte agora. Vou ao mercado, uma mãe quase chora, o filho no
colo, o preço do quilo de feijão pesa mais que ele. Precisamos de arte agora. Uma senhorinha senta
do meu lado no ônibus, me estende o ouvido e me vara de histórias do tempo em que o carnaval se
pulava sem um celular, eu logo me esqueço. Precisamos de arte agora. Algo da vida pulsa, segue
pulsando. Insiste em se fazer ouvir, mas artistas seguimos no exercício de alongar a fome, pois o
ofício é mais importante que o alimento. E o mais importante deve acontecer sempre antes. Há a
arte e há a vida, qualquer mistura é arte manchando a vida, é problema desviado da resolução. Por
ordem de prioridade: os problemas mais altos na frente, depois os probleminhas filhos e sobrinhos seguindo³ . Primeiro a gente derruba o governo, depois a gente escreve um haiku. Primeiro a gente
acaba com a crise sanitária, depois a gente rima. O estado de emergência faz frívolas as urgências
poéticas.
Seguimos, muitos sem perceber, fazendo arte nas encolhas. A vontade de comer é tão profunda, que
vamos recortando a arte para comer sem ter o trabalho de engolir do jeito que der. Deixamos a arte
para depois, mas um pedacinho nos persegue, nos compõe como pele, faz parte da dor e da delícia⁴. Fazemos graça, que também é fazer arte. Graça na desgraça, o brasileiro sabe tão bem quanto o
samba na tristeza. Mas eu sigo com fome e vontade de comer, querendo a faca e o queijo⁵ e fazendo
o avesso que me é também geracional. A fome nos dói, o silêncio nos dói. A falta de arte nos retira
instrumentos de luta. E ainda assim não enfrento a amplitude branca do papel. Abro um docs e corro
logo após digitar a primeira palavra para varrer a poeira da sala. Corro da página para a vassoura
como se o mundo fosse de repente acabar imerso em rinite.
Hoje olhei para a amplitude do papel num delírio de bravura. O mar de histórias acumuladas por
tanto tempo me olhou de volta. Acho que eu também tenho medo de não saber mais nadar. O mar
me chama. Eu caminho, salgada nos olhos. Tem um Gil no fundo:
“Vou correr o risco de afundar de vez
Sob o peso da insensatez
Já sem poder boiar”
- Música “Afogamento” de Gilberto Gil de Roberta Sá.
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1 Referência ao texto “Achado”, por Gabriela Castro.
2 Referência ao conto “O artista da fome”, por Franz Kafka.
3 Releitura do poema “Bem no Fundo”, por Paulo Leminski.
4 Referência à música “Dom de iludir” de Caetano Veloso.
5 Releitura do poema “Não quero a faca, nem o queijo. Quero a Fome”, por Adélia Prado.
06 de junho de 2022
Gabriela Castro
Psicologia - UFRJ
Gabriela é baiana radicada em Recife, carioca da clara e nordestina da gema, atualmente cursando psicologia pela UFRJ. Espectadora ávida da vida em seu acontecimento cotidiano, sempre se sentiu aperreada pela demanda de uma narrativa acadêmica de molde pronto. Como ato de autocuidado, ao final de sua graduação, busca produzir uma escrita livre de protocolos, que esteja cada vez mais confortável com a própria imperfeição.
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