Desmarginação




A noite subiu e com ela se deu início a desmarginação¹ das coisas e das pessoas: seus contornos foram atenuando-se, tornando-se borrões que em breve passaram a ser indistinguíveis. Maria, que já não sabia se ainda era Maria, foi tomada pela angústia de ter o coração muito junto do coração de alguém, compartilhando suas tristezas. A gravidade do centro de seu corpo diminuiu, espalhando seus órgãos, agora flutuantes, ao seu redor. A dissolução do corpo também diluiu o que sentia, fazendo com que tivesse sensações cada vez mais brandas, como amostras de um mundo desconhecido e incapturável. A tristeza já lhe parecia justa, sendo o preço que se pagava pelo sentimento compartilhado. 

E então o sol tornava a aparecer e esquentar ao fundo, a gravidade do centro de seu corpo se reacendia e as margens dos corpos voltavam à nitidez. Era ainda Maria, mas neste dia havia algo diferente, as pessoas estavam montando tapetes de sal colorido pelas ruas: era Corpus Christi. Era isso que fazia-se todos os anos, nesse mesmo dia, e Maria sorriu porque era então seu aniversário. Gostava de pensar que aquele movimento todo era um pouco pra ela, afinal, como não seria? 

Ao caminhar pelas procissões, sentia um fluxo que transitava entre ela e os outros, mas não chegava nem perto de atravessá-la. Será que atravessava os outros? Será que tinha algo dela nesse fluxo, dado que era seu dia? Não parecia, ninguém lhe dirigia o olhar. Essa corrente, que entremeava todas as pessoas e objetos que ali estavam, parecia também uma espécie de liga, o que fazia com que todos aqueles elementos estivessem ali reunidos, dispostos daquela maneira e naquele momento. Como uma bolha transparente, era espacial, temporal, causal. 

Maria foi pra casa e encontrou sua mãe fazendo o almoço. O cheiro da comida tomava uma forma visível e colorida, dos legumes, por exemplo, saía um vapor cilíndrico e laranja. Era o que acontecia nos seus aniversários, conseguia enxergar coisas invisíveis nos outros dias do ano. À tarde, quando cochilou no sofá, sonhou com árvores gigantescas que se emaranhavam em formato de casa, uma espécie de cortejo à sua chegada. Quando acordou, o ambiente estava silencioso, todos na casa tinham saído a passeio sem que lhe acordassem. 

Será que era mesmo seu dia? Parecia ter mais de dia do que dela. 

Se dando conta de sua desimportância, se sentiu de repente a par de todo o mundo, toda natureza, toda desordem. Ao vagar pelas ruas, se sentiu ali percorrendo entrelinhas irrepresentáveis, com a condição de sua consistente distração e abstenção da captura do que vivia. Eis então que o entardecer foi tornando-se anoitecer e a desmarginação se iniciou novamente, com a legítima angústia do incapturável.


¹ Termo usado por Elena Ferrante em A amiga genial, para descrever experiências vividas por Lila, uma das personagens da trama, que utilizava a palavra forçando seu sentido comum ao se referir a ocasiões em que se dissolviam as margens das pessoas e das coisas.


15 de julho de 2022

Isabela Diógenes
Integrante da Equipe Fragmentos 
Psicologia - UFRJ

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