Naquela manhã, choveu. Relampejou. Gotas pesadas caíram sobre todos os pecados da cidade, transformando ruas em córregos de ressentimento e culpa. Eu estava em casa. Você, já fazia um tempo que eu não sabia por onde andava. À tarde, brilhou o singelo arco-íris, como um resquício do mundo recém-despedaçado. Te liguei com toda a hesitação de quem sabe que não deve entrar no mar se não consegue nadar. Porém, mesmo assim, entrei. Quando atendeu, te pedi com cuidado para olhar pela janela –– ou para o céu, tanto faz –– e ver o arco-íris. Você foi, voltou e disse que não viu nada. Não viu nada? Como não? Para mim, era o maior e mais brilhante dos arco-íris que haviam existido. Além de que tinha acabado de chover, então era de se esperar a sua presença no céu. Você só disse que tinha chovido, mas que não tinha arco-íris nenhum para provar a recém-tragédia. Um crime perfeito, sem rastros. Desliguei o celular com uma indignação profunda, um gosto amargo na boca, um sufoco no peito.
Mas dias passaram; semanas, meses, anos. O arco-íris também se cansou e se dissipou do mesmo jeito que apareceu. E, eventualmente, percebi o que havia acontecido naquela tarde. Realmente, não era possível uma tempestade como aquela passar despercebida. Todo mundo viu, sentiu; não tinha como negar. Só que nem todos poderiam enxergar o arco-íris subsequente, porque um arco-íris é instável, translúcido; é da sua natureza. Além disso, também não pode ser visto de todos os cantos da cidade. Talvez você simplesmente não estivesse em um ponto que permitisse a sua contemplação. Talvez estivesse muito distante. Contudo, algo muito forte dentro de mim nunca pôde aceitar essa versão. A gente costumava morar tão perto. Não era possível que você tivesse se mudado para tão longe tão rapidamente. Você estava lá. Você viu o arco-íris. Você sabia exatamente o que ele significava, mais do que qualquer outro habitante daquela cidade implacável. E também conhecia todas as nuances das cores que eu sofreria quando dissesse que não tinha visto o arco-íris que eu desesperadamente tentava mostrar. Sabia que eu ficaria triste e confusa. Que me sentiria como a última pessoa do mundo, duvidaria da minha sanidade mental e –– por fim –– dos meus próprios olhos sonhadores e infantis. Você viu de perto a minha dor, desviou o olhar como se faz a um conhecido que não queremos cumprimentar na rua e seguiu o seu caminho. Hoje eu entendo que você sabia de tudo isso. E, mesmo assim, você respirou profundamente, ponderou por dois segundos, aproximou o celular da boca e despejou: “Não tem nenhum arco-íris no céu”.
Junho, 2022
Manuela Bissoli
Psicologia - UFRJ
Sobre a autora: “Me chamo Manuela, prefiro ser chamada de Manu e no momento estou integrando a Revista Fragmentos. Sou estudante de Psicologia na UFRJ, mas, nas horas vagas, gosto mesmo é de estar em contato com as artes de todos os tipos. Sou frequentadora ávida de salas de cinema e plateias de teatro. Porém, o que mais gosto de produzir é a escrita e a dança, nas quais me encontrei. Observar as pessoas é também um hobby à parte pelo simples prazer de constatar quantas vidas e mundos se entrecruzam em um mesmo instante fugaz. Acima de tudo, escrevo para mim, mas compartilho com prazer o que faço e, para quem lê, espero que gostem!”
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